terça-feira, maio 29, 2007

Reminiscências do acaso

Eu sempre fui uma criança muito imaginativa. Mas as coisas que eu fantasiava eram bem menos sérias e decisivas do que minhas reflexões de juventude. Adorava fazer experiências, testar coisas, conhecer fenômenos. Vivia num mundo muito maior do que aquele captado pela visão imediata.

Quando era pequeno e ia passar férias na fazenda dos meus tios, viajava um pouco contrariado porque nunca gostei de campo. Sempre tive um certo desespero em me enfiar num tipo de isolamento, como se houvesse a possibilidade de acontecer alg0 de importante na cidade e que eu não pudesse presenciar. Então, nos primeiros dias ficava sempre muito entediado, até que ia descobrindo o que eu poderia explorar naquele novo universo.

Fora os experimentos que fazia, misturando diversas substâncias, em busca da "poção milagrosa", gostava de observar coisas da natureza. A minha vocação ao isolamento possibilitava que eu desse vazão às minhas próprias idéias e pudesse colocá-las em prática. Uma vez, acordando de manhã, notei o cadáver da maritaca que, dias antes, alimentava seus filhotes num ninho que perto ali ficava. Foi então que, depois de chorar pela sua morte - algo bem rápido, por sinal -, resolvi enterrá-la, com direito a missa e tudo. Meses depois estava revolvendo seus restos para verificar o que havia acontecido.

Queria ter continuado com aquela sagacidade de criança. Queria ter conservado aquela inocência. A mesma casa onde meus bisavós viveram, e que hoje é ocupada por meus tios-avós, tornava real os meus sonhos. Os roteiros que eu escrevia tinham, na sua maioria, aquele lugar como cenário. Eu conseguia, com uma autenticidade tão grande, viver as personagens que imaginava... Sentia com tanta intensidade as emoções delas, os seus medos, as suas angústias... Aquele ambiente antigo, cheirando a colonial anacrônico, me encantava. Cada detalhe: do asoalho de madeira polido a oito mãos até aqueles móveis, que eu jurava que ia levar quando minha prima fosse se desfazer deles (ela odeia aquelas antigüidades).

Aquele cenário me inspirava tanto... O porão, onde eu não entrava sozinho, tinha um cheiro tão característico... E eu olhava a enorme e pesada cruz que havia sido retirada da sepultura dos meus bisavós e fantasiava que eles pudessem estar enterrados ali. Tudo isso para que a história ficasse ainda mais emocionante.

Eram tão especiais aquelas noites brancas de farinha, com polenta na mesa, pão na fornalha e canudo depois do jantar... E eu inseria tudo aquilo nas minhas histórias...

Lembro-me de algumas. Lembro-me de uma que se passava na atualidade, em que eu era um homem sozinho que vivia somente dentro daquela casa, isolado do mundo. Nessas circunstâncias coisas iam acontecendo comigo naquele restrito ambiente. Outra história foi inspirada pelo meu tio, que contava os "causos" que envolviam os escravos do bisavô dele, histórias que tinham se passado nequele mesmo lugar, razão da minha inquietação em ficar lá sozinho.

Meu tio, na verdade mais avô que os meus verdadeiros, sempre esteve muito presente na vida da minha família nuclear. Não sei se pelo fato de não ter tido avós estruturados tradicionalmente eu acabei elegendo a figura desses meus tios-avós como avós de verdade. Acho que sim. Lá eu tenho a liberdade que não encontro na casa das minhas avós de verdade...

Todo jantar é acompanhado, ainda hoje, pelas histórias do meu tio. Variando a entonação conforme a gravidade do fato, suas palavras, descontinuadas pelos goles de vinho, vão formando habilidosamente frases que acabam sempre por revelar, ao final, algum sentido espetacular.

Nessa realidade, acrescida de muita fantasia, eu montava minhas histórias e vivia algumas das minhas personagens. Como num filme...

Às vezes me pego pensando nesses meus sonhos de infância. Eu queria tanto poder viver aquela verdade novamente... Sentir minhas personagens com sentia... e, por que não, chorar como eu chorava! Queria de volta todo aquele encantamento... Queria muito, muito...


Ouvindo: Villa-Lobos - Bachianas No 5

Um comentário:

Guilherme Genestreti disse...

Também ando bastante saudoso das coisas... Mas penso que agora a gente tá vivendo uma coisa sem precedentes, é o que me anima. Adorei a descrição da fazenda...!